daphne emanuelle
Me chamo Daphne Cunha e tenho 30 anos. Trafego sobretudo entre as linguagens da fotografia e pintura, interessa-me a captura do cotidiano, da subjetividade e da intimidade. A representatividade advém não de uma montagem, mas da atenção dispensada à distração, quando a cena se torna mais pungente e afetiva. Recortando do cotidiano o instante, câmera e pincel prolongam-no, demandam do olhar que se desloque em seu curso de repetição. Ser mulher, preta e lésbica constituem meu lugar de percepção e afetação da minha obra. Atuo concomitantemente como pesquisadora, numa linha que discute raça, gênero e sexualidade no âmbito da produção artística.
Nasci em Oliveira – pequena cidade no interior de Minas Gerais – e me mudei para Belo Horizonte em 2009, para estudar na Escola de Belas da UFMG, onde me graduei com habilitação em pintura e fiz formação complementar em fotografia. Em 2019 defendi, pela mesma universidade, a dissertação “Mulheres Artistas: notas sobre estratégias curatoriais, questões de gênero e raça e de empoderamento”, pesquisando, sobretudo, a produção de mulheres artistas latino americanas entre 1960 e 1990, cujos trabalhos dialogam com o movimento feminista e antirracista.


Na minha família muitas mulheres não gostam de ser fotografadas e, normalmente, quando se reconhecem numa imagem fixada no tempo, sentem-se constrangidas. Esse desconforto com a própria imagem não é ocasional, menos ainda restrito às mulheres da minha família. É uma questão estrutural, construída a partir de um imaginário de beleza com o qual não criamos nenhum tipo de identificação, sem mencionar os atravessamentos que enfrentamos desde a infância onde nossas características físicas são pontuadas de forma pejorativa. Tais associações atreladas à falta de acesso resultam numa escassez de registros.
Junto à minha pesquisa de mestrado, aprofundei uma investigação em relação à minha família materna. Existe uma pequena fotografia antiga, bastante marcada pelo tempo, da minha bisavó na marca dos seus cento e poucos anos que minha avó guarda num pequeno baú. Ali também existem outras preciosidades que ilustram os fragmentos de histórias que sei sobre minha origem, onde quase tudo me foi contado, assim, com palavras buscadas na memória, sem muitas informações precisas. Causos, lembranças, dados contraditórios, detalhes e nomes de um passado não muito distante. Muito do meu trabalho como fotógrafa parte do registro documental da minha família.
Entre 2010 e 2021, participei de exposições coletivas; ministrei oficinas de fotografia e aquarela; atuei junto a programas educativos de espaços culturais tanto como arte-educadora, quanto como coordenadora de comunicação; fui docente em cursos livres da rede formal e não-formal de ensino, ministrando classes para crianças, jovens, adultos e formação de professores. Atualmente curso o Básico em Curadoria pela Fundação Clóvis Salgado – Belo Horizonte; faço parte do grupo de pesquisa interdisciplinar História das Exposições e do grupo de estudos Histórias das Mulheres, Histórias Feministas; sou professora designada pelo Estado (SEE-MG) no curso técnico de Artes Visuais – CICALT. A primeira fotografia, de 2018, é um registro afetivo da minha mãe arrumando minha avó para uma sessão de fotos que eu faria em comemoração aos seus 90 anos. A imagem faz parte de uma série mais ampla intitulada Dicotomia, onde selecionei alguns dos gestos de afeto e cuidados cotidianos entre as mulheres que me cercam.


A fotografia seguinte é de 2021 e, de certa forma, é uma continuidade dos registros documentais afetivos, protagonizados por mulheres. Tanto como matriarcas, quanto como alicerces de uma sociedade, a função do cuidado configura um lugar de atuação dentro da dinâmica cotidiana burguesa que advém de uma projeção e continuidade da ocupação maternal – o zelo com os filhos se estende a todos membros da família, bem como ao espaço da casa e à economia doméstica como um todo. Esse senso moral naturaliza como “condição feminina” esses atributos, sob a forma, muitas vezes, de obrigação e, raramente, de reconhecimento. Nesta proposta, no contexto de isolamento social, o trabalho manual ganha outros contornos e amplitudes: os registros dessas mulheres em nosso cotidiano partilhado documentam os afazeres pelos quais construímos a ideia de abrigo.
A terceira fotografia,de 2020, traz uma outra esfera da convivência: debruçar sobre o outro um olhar atento e reinventado. Da impermanência inerente à vida, ressignificar a presença. Convivendo com minha parceira, nós, duas mulheres e artistas, passamos a somar e somatizar na percepção as impressões dessa economia diária. Debruçamos e desdobramos o olhar de sensibilidade sobre essas miudezas que nos atravessam. Uma falando de um olhar que passa pela cozinha, o alimento; outra com olhar de observação sensível e afetivo na captura da linha fina do cotidiano, da intimidade.
A quarta fotografia, o autorretrato, foi capturada a partir de um jogo de iluminação e reflexo no espelho quebrado. Faz referência a outra série, de 2015, onde exploro a ideia dos Reflexos Fragmentados enquanto traumatologia social de despertencimento: o reflexo entre o que sou, como me vejo, atenta aos fragmentos refletidos no outros onde me reconheço.
E, por fim, a quinta fotografia é uma dupla exposição de uma série de 2020, denominada OIKOS: uma nomia afetiva. Mais uma vez eu e minha parceira nos atravessamos em percepções do cotidiano e a fotografia funciona como uma lente sobre uma tarefa de cuidado, um gestual antigo que atravessa toda cozinha brasileira e é normalmente relegado às mulheres. Na economia do dia a dia, a catação do feijão é imperceptível aos mastigadores, bem como muitas das atividades domésticas, invisibilizadas ou não reconhecidas como trabalho. Este ensaio advém de uma dobra. Uma performance sem plateias no quintal de casa em que se repete fora do tempo o gesto invisível.
As fotografias aqui apresentadas, embora atribuídas a datas e séries diferentes, compilam a recorrente relação de afetação entre eu e as mulheres com quem convivo, nas quais me espelho, me apoio, me construo e me percebo, num movimento recíproco cuidado e admiração.
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